O que é ideologia?

O que é ideologia?

Por Walace Ferreira* e Stella de Sousa Martins**

Contextualizando

Outras indagações…

Muitas questões, certo… então, vamos lá!

Conceituando

A resposta por trás das reflexões acima é que, em sociedade, somos guiados o tempo todo por uma série de ideologias. Bom, o que, então, seria uma ideologia, essa bandeira abstrata que seguimos sem nem sabermos ao certo o que é?

Segundo a filósofa Marilena Chauí, ideologia é:

“[…] um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (ideias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um corpo explicativo, de representações e práticas (normas, regras e preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador” (1980, p.113).

Nesse sentido, ideologia tem a ver com um conjunto de ideias, pensamentos, doutrinas ou visões de mundo de um indivíduo ou de um grupo, orientado para suas ações em sociedade. O fato é que os homens costumeiramente procuram representações em torno das quais procuram explicar e compreender sua própria vida individual, social, suas relações com a natureza e com o sobrenatural.

As ideologias geralmente são criadas no ambiente político, em que as decisões e ações precisam ser sustentadas por argumentos fortes e consistentes; e na vida econômica, já que vivemos no capitalismo, sistema que valoriza a economia em última instância. Mas não são apenas políticos e membros da classe econômica dominante (burguesia) que criam as ideologias. Como este conceito se refere a elaborações explicativas sobre a realidade, podem ser criadas também por pensadores e intelectuais da sociedade, como sacerdotes, filósofos, cientistas, professores, escritores, jornalistas, artistas, dentre outros.

É impossível pensar as relações sociais sem esse direcionamento abstrato chamado ideologia. Todo grupo envolve-se com alguma ou algumas, como representação (ões) daquilo que se faz e que será seguido. Mas a aceitação delas não ocorre de forma igualitária por todos os indivíduos, haja vista as sociedades estarem em constante transformação. As ideologias podem ser aceitas, e normalmente o são pela maioria das pessoas que compõem um grupo, ou podem ser rejeitadas, de modo que novas ideologias podem ser criadas.

Isso fica claro na famosa música de Cazuza, “Ideologia”, lançada em 1988. O contexto era de um país recém-saído da ditadura militar (que acabou em 1985) e que, apesar do retorno à democracia e às liberdades civis, vivia uma séria crise econômica agravada pela concentração de renda, pobreza extrema, fome, hiperinflação e fortes vestígios de autoritarismo. Na canção, Cazuza diz “Ideologia! Eu quero uma para viver”, numa indicação crítica ao contexto do país. O clássico de Cazuza, portanto, questionava ideologias como “capitalismo”, “autoritarismo”, “conservadorismo”, “moralismo”, “religiões”, insistindo na reflexão e na esperança de novos tempos.

Seguindo essa perspectiva, dizemos que as ideologias podem ser conflituosas ou não, no que dependerá do teor dos seus princípios e do contexto social em que elas se encontrarem. Geralmente, as ideologias religiosas são muito conflituosas, pois cada crença acredita ser a “dona da verdade” com os seus dogmas, negando o que as outras doutrinas pregam. No Brasil, chamamos atenção para ações de intolerância contra membros de religiões de matriz africana, bem como em relação a seus templos. Infelizmente parte desses gestos decorre de visões equivocadas e distorcidas sobre a Umbanda e o Candomblé apregoadas por outras vertentes religiosas.

O conceito de Ideologia em movimento

O conceito foi inventado pelo filósofo francês chamado Destutt de Tracy, no livro “Elementos da Ideologia” (1801). No entanto, ganhou diferentes abordagens com o passar tempo.

Na Sociologia, os pensadores que utilizam o termo sob uma concepção crítica defendem que a ideologia é um instrumento de dominação que age por meio do convencimento (persuasão), alienando a consciência humana. O alemão Karl Marx (1818-1883), junto de Friedrich Engels (1820-1895), foi quem trabalhou o conceito da maneira mais importante em uma série de manuscritos de 1846 que foi intitulado de “A ideologia alemã”.

Segundo a visão de Marx, a ideologia está associada aos seguintes processos:

  1. I) Ocultar e dissimular as divisões sociais, políticas e econômicas de uma sociedade, fazendo parecer natural uma divisão construída socialmente. Levam-nos a crer, por exemplo, que somos todos iguais porque participamos da percepção de “humanidade” ou da ideia de “nação”, mas na realidade a distribuição de riqueza material e de poder político-social é desigual. Somos levados a crer que as desigualdades são decorrentes das diferenças individuais, das capacidades, da inteligência, da força de vontade, quando, na verdade, as desigualdades são resultantes de uma estrutura capitalista individualista, separada por classes sociais desiguais e perpetuada ao longo da história moderna.
  2. II) Gerar ilusões a respeito do consumo. Pensamos em produtos de marcas famosas ou vamos aos shoppings justifys porque nos ligamos a valores de luxo e fama, confirmados pela moda e pelo marketing. Chegamos a pensar ser impossível a vida sem smartphones, smarts tvs, internet e outras tecnologias recentes sem percebermos que estão ligados ao ciclo de reinvenção produtiva capitalista, que conta, ainda, com a obsolescência programada. Essa é a ideologia do consumismo, que descarta a sustentabilidade da natureza e a capacidade de ambientação do ser humano frente a tantas inovações, mas sem o qual o capitalismo não se sustenta.
  3. III) Ocasionar na falsa consciência, ou seja, as ideologias geram uma visão da sociedade incompleta e acrítica. Significa que temos uma falsa consciência da realidade, vendo-a de forma incompleta conforme a ideologia que seguimos. Achamos que a sociedade se restringe àquilo que curtimos, reduzindo-se a nossa bolha, quando na verdade ela é muito mais abrangente. Exemplo claro acontece quando defendemos nossa posição política negando quase integralmente o que vem de outras correntes político-partidárias.

Para Marx a sociedade se divide em duas esferas conectadas por uma dinâmica dialética: infraestrutura e superestrutura. A infraestrutura é a esfera da produção material responsável pela produção dos bens que satisfazem as necessidades materiais dos indivíduos, ou seja, é a economia de uma sociedade. Por outro lado, a superestrutura representa o conjunto de ideias, das leis, das religiões, a moral e das organizações políticas e jurídicas, correspondendo ao espaço em que se encontram as ideologias de uma sociedade. A superestrutura consiste num universo simbólico que garante a manutenção de uma ordem econômica e social controlada pelas classes dominantes. A pirâmide a seguir ajuda-nos a entender essa relação:

Do conceito de ideologia, segundo Marx, resulta o conceito de alienação, na medida em que leva as pessoas à falsa percepção de que as formas de dominação são naturais. No caso do trabalho, a título de exemplo, o pensador alemão entende que, ao invés de realizar o homem, o trabalho teria o papel de exploração e não de humanização. Aqui encontra-se a alienação, concepção que leva o indivíduo a ser explorado sem perceber. Em Marx, portanto, vivemos alienados ao mundo que estamos inseridos, pois somos levados a agir não conforme a “essência” humana, mas por uma “aparência” que é construída pelo contexto histórico-econômico. Na atualidade, o capitalismo é uma ideologia presente na infraestrutura da sociedade moderna, relacionando-se a todas as ideologias que estão na superestrutura (consumismo, moda, valorização da propriedade privada, ideia de humanização pelo trabalho, etc). Estas, por sua vez, dão sentido às relações de produção estabelecidas pelos indivíduos na base material da sociedade.

Portanto, se Marx respondesse aquelas questões colocadas no início do texto, ele diria que todas as nossas certezas são o resultado do estado de alienação em que nos encontramos em relação ao capitalismo e à modernidade.

Outros pensadores também abordaram o conceito de ideologia, seguindo e readaptando as ideias de Marx. É o caso do filósofo e político italiano Antonio Gramsci (1891-1937), para quem ideologia consiste numa visão de mundo produzida pelas diferentes classes sociais que se materializam nas práticas sociais, ao mesmo tempo em que são influenciadas por elas, formando um sistema de valores culturais. Como Gramsci observava nas ideologias expressões de classes sociais vinculadas às práticas culturais, ele conclui que as classes dominantes tentam expandir suas visões de mundo para as classes dominadas, influenciando-as de modo a criar uma situação de hegemonia. Entretanto, as classes dominadas não necessariamente ficariam presas a um papel passivo nesse processo, podendo desenvolver uma visão própria de mundo, com novas ideologias, numa ação de contra-hegemonia (SILVA et al, 2016).

Por fim, partindo de uma concepção marxista de ideologia, mas não se limitando a ela, o sociólogo Karl Mannheim (1893-1947), no livro “Ideologia e utopia” (1929), apresentou uma distinção entre ideologia e utopia. Ideologia seria um conjunto de concepções, ideias e teorias que orientam os indivíduos para estabilizar, legitimar ou reproduzir a ordem das relações sociais. Utopia, por outro lado, consistiria em concepções e teorias que visam a construção de outra realidade social, geralmente sendo pensadas pelas classes oprimidas. Assim sendo, as ideologias seriam conservadoras, pois expressam as posições das classes dominantes defensoras da ordem estabelecida (OLIVEIRA; COSTA, 2016).

O conceito de Ideologia e seus usos

No século XX, expressivas ideologias se destacaram, tais como as citadas abaixo:

Ideologia nazista: Surgida na Alemanha e disseminada por Adolf Hitler, principalmente, nas décadas de 1930 e 1940. Caracterizava-se por um caráter autoritário, expansionista e militarista, defendendo que a raça ariana era superior às demais, e que os judeus deviam ser exterminados. Hoje em dia, infelizmente, ainda existem grupos de ideologia neonazista com ideias extremistas de cunho racial.

– Ideologia comunista: É defendida por Marx na obra “Manifesto Comunista” (1848) e depois por outros pensadores e políticos. Tinha como pressupostos a abolição da propriedade privada, a extinção das classes sociais, o fim das religiões, a comunização dos meios de produção e, numa etapa avançada, seria marcada pelo fim do Estado. Embora a China seja governada pelo Partido Comunista Chinês (PCC) desde 1949 e se diga que a União Soviética (1922-1991) foi comunista/socialista, o projeto comunista original nunca ocorreu na prática. Vale frisar que, teoricamente, o socialismo consistiria na etapa de passagem para o comunismo, possuindo algumas diferenças como o controle da economia pelo Estado e o esforço de socialização dos meios de produção.

– Ideologia democrática: Surgiu, ainda que de forma restritiva, na Grécia Antiga (séc. V a.C), tendo como ideário a participação dos cidadãos na vida política. Na modernidade, é marcada pela democracia participativa, na qual elegemos nossos representantes por meio do voto, pela liberdade de expressão e por amplos direitos universais. É o sistema político da maior parte dos países atuais.

– Ideologia capitalista: Em seu modelo comercial desenvolveu-se na Europa durante o Renascimento Comercial e Urbano (séc. XV). No século XVIII é desenvolvida em sua vertente industrial graças à Revolução Industrial Inglesa. Para chegar ao formato que conhecemos hoje, ainda foi acrescido do chamado capitalismo financeiro em fins do século XIX. Ligada ao desenvolvimento da burguesia, visa o lucro e a acumulação de riquezas, ao mesmo tempo em que tem gerado concentração de renda e desigualdades sociais.

– Ideologia nacionalista: Exaltação e valorização da cultura do próprio país, valendo-se de símbolos nacionais (bandeira, hino, idioma, etc) que estabelecem elos de pertencimento entre os indivíduos desta nação.

– Ideologias religiosas: Toda religião pode ser considerada uma ideologia, na medida em que traz consigo uma doutrina que deve ser seguida pelos seus membros. Destacam-se as ideologias cristã, judaica, islâmica, budista, hindu, animista e as de matriz africana.

A seguir ilustrações dessas ideologias:

 

 

Referências bibliográficas

BOMENY, Helena; MEDEIROS. Bianca Freire; EMERIQUE, Raquel Emerique; O’DONNELL, Julia. Tempos Modernos, tempos de sociologia. 2.ed. São Paulo: Ed. do Brasil, 2013.

CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1980. (Coleção Primeiros Passos).

GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. 7.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.

MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1972.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Martin Claret, 2002.

OLIVEIRA, Luiz Fernando de.; COSTA, Ricardo Cesar Rocha da. Sociologia para jovens do século XXI. 4.ed. Rio de Janeiro: Imperial Novo Milênio, 2016.

SILVA, Afrânio et al. Sociologia em movimento. 2.ed. São Paulo: Moderna, 2016.

TOMAZI, Nelson Dacio. Sociologia para o ensino médio. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

Dicas de leitura

ATWOOD, Margareth. O conto da aia. Rio de Janeiro: Rocco, 2019.

BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. 17.ed. São Paulo: Ática, [s.d.]. (Série Bom Livro).

CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1980.

NICCOL, Andrew. O show de Truman: O Show da vida. São Paulo: Editora Manole, 1994.

ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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Dica de atividade pedagógica:

A atividade sugerida deve ser desenvolvida em 3 etapas:

1) Vejam o filme “A Onda” (2008), produção alemã dirigida por Dennis Gansel, que aborda o funcionamento da Alemanha nazista a partir da construção de uma ideologia autoritária e indaga se seria possível a reprodução de um modelo de poder autocrático nos dias atuais. O filme pode ser passado pelo (a) professor (a) em sala de aula ou recomendado que os (as) alunos (as) o assistam em casa;

2) Formem grupos e estabeleçam a correlação entre o que foi estudado sobre “Ideologia” e o conteúdo do filme, com cada grupo escolhendo uma das seguintes questões:

2.1. Como se desenvolve ideologicamente uma corrente autoritária?

2.2. É possível as massas do século XXI deixarem-se convencer por uma ideologia autocrática? Se sim, como?

2.3. Que relações podem ser encontradas entre os discursos autocráticos mostrados no filme e o crescimento do populismo de extrema-direita dos últimos anos em vários lugares do mundo, especialmente no Brasil?

3) Cada grupo deverá apresentar, em sala de aula, suas conclusões em formato de seminário, seguido de um debate que estabeleça reflexões sobre o assunto estudado.

 

 

 

 

Como citar este material:

FERREIRA, Walace; MARTINS, Stella de Sousa. O que é ideologia? Blog Café com Sociologia. jul. 2020.

 

 

* Doutor em Sociologia pelo IESP/UERJ; Professor adjunto de Sociologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: walaceuerj@yahoo.com.br.

** Graduanda em Ciências Sociais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: stellaclen@hotmail.com.

 

Veja também:

A formação de professores e as disputas ideológicas em manuais escolares de Sociologia da Educação (1930-1950).

Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

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