Como surgiu o dinheiro? uma breve provocação à teoria convencional e ao mito do escambo

Como surgiu o dinheiro?

Por David Deccache*

 

A resposta mais usual para essa pergunta complexa é extremamente simples. E errada. Vejamos:

No Manual de Macroeconomia elaborado pela equipe de professores da USP a resposta é: “O surgimento da moeda decorre do progresso econômico, com a especialização dos indivíduos em produções isoladas, que não são capazes por si só de atender ao conjunto de todas as suas necessidades. Para a satisfação destas, devemos recorrer cada vez mais aos demais agentes para obter, por meio de troca, os produtos que necessitamos. As trocas podem ser feitas de forma direta, o escambo, ou de forma indireta, pela intermediação da moeda.”

A mesma história contada acima é encontrada em praticamente todos os manuais de economia. De maneira resumida, o argumento padrão é mais ou menos assim: era uma vez o escambo, um sistema que requer uma dupla coincidência de desejos, ou seja, se alguém produz pregos e deseja sapatos, tem que encontrar algum produtor de sapatos que esteja disposto a adquirir pregos. Como o escambo era um sistema muito difícil, as pessoas inventaram o dinheiro, ou seja, escolheram uma mercadoria de aceitação geral que passa a ser utilizada para liquidar as transações. Além disso, normalmente, as mercadorias escolhidas como moeda não poderiam ser perecíveis, ou seja, deveriam armazenar seu valor ao longo do tempo, nesse sentido, carne, por exemplo, não seria uma boa moeda, já o ouro e outros metais seriam ideais. A mercadoria para ser moeda também deveria ser facilmente mensurável e divisível (fácil de pesar e dividir – tipo o ouro). Daí que se deriva as funções clássicas da moeda: meio de troca, reserva de valor e unidade de conta. Eis o reino da fantasia do escambo. E é assim que quase todo economista tem seu primeiro contato com a economia monetária.

A história acima até que é bem amarrada, intuitiva, criativa. Convence mesmo. Mas isso ainda não quer dizer muita coisa. A história da terra plana também foi aceita por muito tempo (pasmem, tem gente que ainda acredita nisso até hoje). O criacionismo, dada a sua simplicidade, também é bem mais popular que a teoria da evolução. Enfim, para todo problema complexo, há uma resposta simples, intuitiva, didática e … errada.

O grande problema da história acima é que ela não passa de um mito. E o mito, como muito bem explica João Sayad, se opõe a história: “A história procura desvendar o que aconteceu realmente no passado. O mito é uma história, ou melhor, uma estória que não aconteceu realmente.”

Segundo David Graeber, professor da London School of Economics com doutorado em Chicago e um dos maiores antropólogos do dinheiro da atualidade, há quase um século os antropólogos já desmontaram o mito do escambo. Não há, em toda a antropologia do dinheiro, nenhum indício de que um dia, em qualquer lugar do universo conhecido, existiu uma sociedade como a apresentada nos livros introdutórios de economia. Porém, ainda de acordo com Graeber, há numerosos indícios sugerindo que isso nunca aconteceu.

A grande antropóloga Caroline Humphrey, da Universidade de Cambridge, após décadas de pesquisa, é enfática: “Nunca foi descrito nenhum exemplo puro e simples da economia do escambo, muito menos de que o dinheiro tenha surgido do escambo; toda a etnografia existente sugere que esse tipo de economia nunca existiu.” Anne Chapman reafirma de maneira ainda mais incisiva a posição de Humphrey ao afirmar que não há evidências de nenhum sistema puro de escambo na história da humanidade (David Graeber).

A construção desse mito, obviamente sem qualquer seriedade científica, sustenta toda a teoria econômica convencional: os seres humanos possuem uma propensão natural à troca e, a partir disso, organizam sociedades baseadas no escambo que evoluem – naturalmente e graças ao aprofundamento da divisão do trabalho – para sociedades capitalistas de mercado no qual a moeda serve como mera mercadoria escolhida para facilitar as trocas. Sendo assim, o mito do escambo deriva de um outro mito acerca da natureza humana (mas que não é assunto para um texto de Facebook). Essas coisas, ao menos no campo da Economia, surgem com Adam Smith, que na época, obviamente, não tinha acesso aos estudos arqueológicos e antropológicos que temos hoje. Tudo isso tem implicações importantes na teoria econômica e nas políticas concretas, uma delas é a de que o Estado realiza os seus gastos retirando o dinheiro que surge de maneira espontânea nos mercados.

E se o mito do escambo, desculpem a redundância, é um mito, qual seria a explicação correta para o surgimento da moeda?

Ao contrário dos economistas que elaboram uma resposta simples, didática e totalmente ofensiva à boa ciência, os antropólogos não possuem um relato simples para a origem do dinheiro. Nem mesmo possuem uma teoria única e isenta de grandes debates acadêmicos. O dinheiro é algo complexo, seu surgimento, mais ainda. Comparar o mito do escambo que sustenta a teoria monetária convencional com as teorias científicas do surgimento do dinheiro é como comparar o criacionismo com a teoria da evolução e suas dezenas de polêmicas e debates internos. Por isso vou focar em apenas uma das muitas hipóteses sérias que buscam responder a questão que abre o texto.

De maneira breve, uma das teoria sólidas e com boa comprovação teórica (o que não a torna inquestionável), é a teoria cartalista da moeda, ou seja, a teoria da moeda como criatura do Estado. Basicamente, o Estado estabelece o que aceita como pagamento de tributos e o que ele determinar como moeda as pessoas buscarão obter para liquidar suas obrigações tributárias. Se ele determinar como meio de pagamento uma moeda que ele possui o monopólio da emissão, as pessoas (em um primeiro momento) terão que oferecer bens e serviços ao Estado soberano em troca de moeda para liquidar suas obrigações tributárias. Os outros agentes econômicos privados buscarão barganhar com as pessoas que possuem moeda estatal para também fazer frente às suas obrigações. É assim que a moeda é imposta. O mais importante disso é notar que, ao contrário da teoria convencional do setor público baseada no mito do escambo, o Estado não arrecada para depois gastar. É justamente o contrário: o Estado gasta para poder arrecadar. A tributação é uma forma do Estado impor a demanda pela moeda que ele mesmo emite.

David Graeber mostra que os mercados aparecem, geralmente, ao redor dos antigos exércitos (foi assim para o Arthasastra, de Kautilya; o círculo da soberania sassânida e para os “discursos de sal e ferro” chineses). Uma história padrão para simplificar os casos acima, é a seguinte: se um Rei da antiguidade quisesse manter um grande exército em determinada região seria necessário mobilizar os recursos regionais em torno da manutenção dos soldados na região. Seria necessário comida, abrigo, roupas e afins. Se o Rei simplesmente entrega moeda para os soldados e exige que cada família da região devolva uma quantidade equivalente de moeda como pagamento de tributos, toda a economia regional seria transformada, de uma só vez, em uma máquina de provisão de recursos necessários à manutenção dos soldados. O poder do Estado, que se manifesta através da moeda estatal, criaria e organizaria o mercado em torno dos objetivos traçados pelo Rei. Aqui há mais uma conclusão importante: apesar da teoria liberal convencional colocar Estado e Mercado como entes antagônicos, há fartas evidências históricas que comprovam o contrário: Estado e Mercado se associam em um processo simbiótico, ou seja, sociedades sem Estado tendem a não ter mercados.

 

*David Deccache é Economista com Mestrado em Economia em andamento pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Lecionou, como tutor, as disciplinas de Macroeconomia e Introdução à Economia no curso de Administração Pública oferecido UFF em parceria com o CEDERJ

Roniel Sampaio Silva

Mestre em Educação e Graduado em Ciências Sociais. Professor do Programa do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí – Campus Campo Maior. Dedica-se a pesquisas sobre condições de trabalho docente e desenvolve projetos relacionados ao desenvolvimento de tecnologias.

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