Funções e democracia – Espaços institucionais e patrimonialismo

Abaixo uma reflexão realizada por Alexandro Souza. Trata-se de um texto pensado para a realidade do município de Piúma/ES, porém ao ler nota-se que é a realidade de maioria de nossos municípios brasileiros.

 

Por Alexandro Souza*

 

Funções e democracia – Espaços institucionais e patrimonialismo** 

A questão dos alcances e limites dos espaços institucionais sempre se apresenta como uma interessante questão para analisarmos o funcionamento da coisa pública. Infelizmente, como é de costume em todas as esferas da administração pública brasileira, o que vemos é um festival de absurdos a subverter o interesse público em prol do interesse de uma minoria.
O funcionamento da máquina pública deveria pautar-se pelo equilíbrio e respeito entre os seus diversos ramos. O funcionamento eficiente do sistema só pode ser alcançado mediante a execução escrupulosa das tarefas das várias peças que o compõe, sem interferência de critérios extra-burocráticos.
Infelizmente, como todos sabemos, isto é raridade nas prefeituras espalhadas pelo Brasil. Ao invés de critérios eminentemente técnicos, impera o famoso “jeitinho”, a amizade com fulano, aquele laço de parentesco distante com sicrano. Novamente caímos naquele entendimento tosco da res publica como cosa nostra, onde grupinhos próximos ao poder acabam por subverter e privatizar, em benefício próprio, aquilo que deveria ser de uso comum.
Com não poderia deixar de ser, a prática se faz presente nos limites piumenses [Piúma, cidade do litoral sul do ES]. Por aqui impera a ideia de que manter amizade com elementos da administração pública pode trazer facilidades. Não basta ir à autarquia responsável por um serviço; estas, aliás, possuem o seu espaço institucional diminuído pela prática de se recorrer a fulano vereador ou sicrano secretário, ou àquela tia-da-prima-do-cunhado-da-sobrinha de algum pistolão da cena política. Respeitar a execução burocrática ou o princípio de igualdade é balela. Só os tolos perdem tempo com isto. O negócio é ligar para o vereador para que este consiga aquele carrinho para Cachoeiro [Cidade do sul do estado do ES] ou aquela consulta em Vitória [capital do ES].
E quem não possui esta proximidade com o poder? Bom, este que se dane. O espaço burocrático converte-se numa espécia de limbo administrativo, cheio de exigências e postergações. Cheio de remarcações ou impossibilidades na execução de seu trabalho; trabalho para o qual, aliás, todos contribuem.

Uma rede macabra

A informática possui um termo sobre o (mau) uso da rede mundial de computadores que pode nos servir como exemplo neste caso: botnet. O termo designa uma rede de computadores comprometida, utilizada para fins alheios e/ou ignorados pelo dono do computador. Ou seja, um grupo de usuários comuns, através de alguma ferramenta de invasão, tem suas máquinas controladas por um operador externo que as utiliza para a obtenção de ações pouco nobres e ignoradas pelo usuário comum, verdadeiro dono da rede. Neste caso, temos uma máquina “sequestrada” e utilizada para outros fins que não aqueles desejados por seu dono, uma máquina-zumbi.
Ora, a administração da res publica como cosa nostra em nada difere desta prática. Assim como uma botnet envolve a sequestra a máquina para fins alheios à vontade de seu dono, uma tal rede macabra acaba por se apoderar das engrenagens da máquina pública, fazendo com que elas trabalhem, não para o interesse público, mas para o interesse particular de alguns. O resultado é uma estrutura pública orientada por princípios clientelistas, onde não mais impera a igualdade de acesso, mas o critério de proximidade com o poder. A esta rede a reflexão política tem chamado de patrimonialismo – o bem público gerido como patrimônio do príncipe. Ou, para utilizar termos modernos, o bem público gerido como patrimônio do mandatário da vez.

A indústria de dificuldades para vender facilidades

Estamos acostumados, infelizmente, a ver os políticos extrapolando seus limites institucionais de ação. Aferrados a práticas clientelistas e/ou assistencialistas que garantem a eternização no poder, acabam por fazer uso de um artefato curioso: a indústria de dificuldades para vender facilidades. E o que exatamente quer dizer isso? Quer dizer que o pseudo-exercício do poder acaba por gerar distorções que não se justificam ante a racionalidade do próprio sistema. Quer dizer que muitas das dificuldades das quais o político alega ter o poder de resolver simplesmente seriam diluídas com o ordenamento racional da máquina pública. De forma que a questão, por exemplo, do transporte da saúde não deve ser resolvida com um apelo a fulano ou sicrano, mas com uma cobrança à secretaria de saúde para que os procedimentos de uso sejam apresentados de forma transparente, que possam ser facilmente consultados pela população (através de murais, sites ou blogs). A exposição de seu funcionamento tende a salientar os seus critérios puramente burocráticos, bem como a mostrar que o intermediário que se coloca como o “salvador” é, na verdade, o que atravanca o funcionamento (mais ou menos) suave da coisa. Ou seja: a dificuldade em si não existe, mas é gerada por uma interferência alheia ao sistema, tal qual o cracker que faz uso de uma botnet para realizar seus interesses escusos.

Superação

O único caminho possível de superação desta usurpação do bem público por interesses particulares encontra-se na transparência dos atos públicos e no acompanhamento das atividades de nossos representantes. No que diz respeito à transparência, avançamos bastante com a Lei 12.527/2011 – a chamada Lei da Transparência –, que versa sobre a publicização das contas em todos os níveis da administração pública. No entanto, a aplicação desta lei encontra-se irremediavelmente atrelada ao segundo ponto: o do acompanhamento (e cobrança) das atividades de nossos representantes. Como é costume no Brasil, algumas leis “pegam” e outras não, e eu espero sinceramente que este não seja o caso da Lei da Transparência. Cabe a nós, cidadãos, cobrar e zelar por sua correta aplicação, pois somente desta forma conseguiremos superar o caráter mafioso da administração pública no Brasil.
De nossa parte, cabe entender e agir segundo o princípio da igualdade de todos perante a lei. Se queremos uma sociedade justa, devemos agir justamente. Se nos indignamos ante os escândalos de corrupção nos altos escalões do governo, temos que evitar a má ação corriqueira que acaba por justificar todo um descalabro. Devemos exigir o funcionamento puramente burocrático (e lutar por sua eficiência e alcance) da res publica, abandonando a ideia de que existem atalhos que nos fazem alcançar nossos objetivos de modo mais rápido.
* Filósofo/UFJF, mestre e doutorando em Ciência da Religião/UFJF.
** Texto originalmente publicado no blog pessoal do autor, disponível em: https://piuma.es/index.php/piuma/funcoes-e-democracia-ii-espacos-institucionais-e-patrimonialismo.html

Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

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