Dica de aula/projeto premiado: “Respeito às diversidades, para que as diferenças não sejam vistas como desigualdades”

A seguir um projeto desenvolvido pela professora de Sociologia Fabíola dos Santos Cerqueira* em uma escola pública estadual (do Espírito Santo) no município de Serra, o qual foi premiado (1º colocado) pela Secretaria Estadual de Educação do Espírito Santo em 2014.
É com alegria que compartilhamos essa bela prática que teve como um dos pontos de inspiração um texto do blog Café com Sociologia (“O Onacirema”)
A temática escolhida para o desenvolvimento deste projeto é contemplada no eixo orientador do Currículo Básico Comum das Escolas Estaduais do Espírito Santo para a disciplina Sociologia, referente à 3ª série do Ensino Médio: “Cultura, Vida e Sociedade”.
A partir do primeiro trimestre de 2014 iniciamos o projeto, trabalhando conceitos de culturas, identidade cultural, etnocentrismo, relativismo cultural, multiculturalismo e a influência das novas tecnologias na cultura, com os estudantes do terceiro ano do Ensino Médio, do noturno, da
EEEFM Aristóbulo Barbosa Leão. O projeto foi desenvolvido nos dois primeiros trimestres de 2014. Foi encerrado dia 04 de setembro, com a última roda de conversa sociológica.
O objetivo deste projeto era identificar as diferentes culturas existentes no cotidiano de cada estudante e promover vivências com culturas diferenciadas de forma a permitir que eles reconheçam e valorizem as diferenças, sem hierarquiza-las, ou seja, sem as enxergarem como desigualdade.
Desde o final de 2013, com a identificação de uma estudante de origem cigana e com as narrativas dela que giravam em torno do preconceito sofrido sempre que descobriam sua origem, iniciamos o planejamento do Projeto “Respeito às diversidades, para que as diferenças não sejam vistas como desigualdades”, o qual previa uma apresentação para as turmas do 3º ano do
Ensino Médio com a estudante cigana, além da discussão em sala de aula, utilizando vídeos e textos, abordando os direitos humanos e a diversidade na escola. No decorrer do projeto tivemos oportunidade de realizar mais duas aulas de campo: uma no Teatro Carlos Gomes e outra no Convento da Penha e no Parque Estadual da Fonte Grande.
Foram utilizados vídeos, imagens e textos para a realização do projeto, além de data show, computador e caixa de som. Esses recursos foram usados durante as aulas e contou com o apoio de sete estudantes do curso de Ciências Sociais, vinculados ao Programa de Iniciação à Docência (PIBID), da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
Etapa 1 – Sensibilização do olhar sociológico Para esta primeira etapa foi lido o texto “Onacirema” (Anexo 1) de forma coletiva. Após a leitura, os estudantes foram divididos em pequenos grupos e tiveram que discutir o texto, relatar o posicionamento do grupo e elaborar um desenho que melhor expressasse a visão dos estudantes a respeito dos onaciremas. O surpreendente nesta etapa foi o olhar de espanto dos estudantes quando descobriram que o onacirema era na verdade o americano e que os hábitos, costumes e crenças descritos no texto eram na verdade da nossa
cultura e não do outro (o estranho). O olhar de estranhamento diante do “outro” e o de naturalização diante do “eu” foi marcante nesta etapa. Nova leitura do texto é feita, dessa vez identificando os costumes, crenças e hábitos dos ocidentais. O estranho torna-se familiar.
Etapa 2 – Trabalhando conceitos Nesta etapa, que durou de fevereiro a início de setembro de 2014, em sala de aula, trabalhamos os conceitos de culturas, identidade cultural, etnocentrismo, relativismo cultural, alteridade, multiculturalismo, cultura de massa e indústria cultural, além da relação da juventude com as novas tecnologias. Utilizamos vídeos, textos e imagens para
orientar as discussões.
Etapa 3 – Vivências culturais Em 25 de junho de 2014 tivemos uma apresentação no auditório da escola para todas as turmas do 3º ano (Regular e EJA), com as estudantes Marcelle Carvalho e Márcia Carvalho, ambas do 3N12, através da qual elas puderam falar aos colegas e professores sobre a cultura cigana, desconstruindo preconceitos e defendendo uma cultura de respeito aos direitos humanos e à cidadania.
Enquanto docente, precisamos reconhecer que os conhecimentos levados à sala de aula, por nós, não são os únicos possíveis. Existem outros. Outros, inclusive, que são de domínio dos discentes. Se não reconhecemos como riqueza o capital cultural trazido pelos estudantes, não é possível atribuir nenhum valor à cultura do outro, seja ela qual for. Seja ela afrobrasileira, indígena, cigana, judaica ou qualquer outra. Por isso é importante conhecer, reconhecer e valorizar o outro e o seu modo de ser e estar no mundo.
A única forma possível de se romper com o preconceito é o conhecimento. Trazer a cultura cigana para a escola foi uma forma de levar conhecimento sobre essa cultura diferente e provocar a reflexão sobre os preconceitos a que somos submetidos cotidianamente, sem nem sequer nos darmos conta.
Refletindo a partir do conhecimento a respeito do outro, de sua forma de ser e estar no mundo e, então, cada um terá condições de romper com os seus próprios preconceitos.
A metodologia utilizada pelas estudantes Marcelle e Márcia para apresentação de sua cultura foi diferente da que estamos acostumados. Ao invés de fazer uma exposição, propuseram-se a tirar dúvidas de todos os presentes (alunos e professores) sobre seus costumes, suas crenças, seus hábitos e também sobre os mitos que são contados sobre os ciganos. De certa forma, romperam com a lógica adultocêntrica e academicista. Promoveram um diálogo e a construção do conhecimento a respeito da cultura cigana. Foi a oportunidade de estarmos com alguém que é diferente, ouvi-lo, mesmo com o estranhamento e com muitas falas preconceituosas por parte dos estudantes e até de alguns professores, inclusive nas perguntas.
Interessante ressaltar que na hora em que foi apresentada a dança cigana muitos estudantes a identificaram com o candomblé e decidiram retirar-se da sala. Não conseguiram compreender que era apenas uma dança em homenagem à padroeira dos ciganos. E mesmo que fosse do candomblé, não há problema em assistir uma apresentação religiosa de outra cultura. Isso não nos fará perder nossa crença. No entanto, no dia da festa em comemoração ao dia do estudante, um dos convidados para fazer a apresentação cultural, sem nos avisar, cantou hinos cristãos, leu versículos da Bíblia e até fez uma oração, mas não houve qualquer reação negativa por parte dos estudantes. No diálogo com eles sobre esse fato, afirmaram: “não estávamos preparados para o novo, por
isso estranhamos, mas quanto às manifestações cristãs, isso já faz parte da rotina da maioria das pessoas aqui da escola”.
Continuamos a provocá-los, pois fazer parte da rotina da maioria não é fazer parte da vida de todos. E como ficam os outros? Nesse momento conseguiram compreender que o ideal é conviver com as diferenças, é respeitar a crença do outro, mesmo que não seja a nossa. Compreenderam que a escola pública, sendo laica, deve ter espaço para todos os credos, sem distinção. Logo, se cabe uma oração cristã, cabe uma dança do candomblé (e uma dança cigana).
Em 17 de julho, os estudantes puderam prestigiar a Orquestra Sinfônica do Espírito Santo, no Teatro Carlos Gomes. A maioria dos estudantes era do 3º ano e a proposta foi coloca-los em contato com um estilo musical diferente. A reação foi surpreendente, pois apesar de muitos professores previrem que haveria um choque cultural e que eles detestariam a experiência, ocorreu que amaram poder entrar no Teatro Carlos Gomes e se deliciaram com a música.
No dia 30 de agosto de 2014 fizemos aula de campo no Convento da Penha e no Parque Estadual Fonte Grande, com os estudantes do 3º ano, em articulação com as disciplinas de História, Filosofia, Geografia e Sociologia. Sabemos que o Convento da Penha é um patrimônio cultural e religioso para os católicos. Observamos a forma como as pessoas se expressavam para manifestar sua fé, as doações em dinheiro, as compras na lojinha de santinhos e vasilhames de água benta, as velas acesas e toda a adoração a Nossa Senhora da Penha.

 

No Parque Estadual da Fonte Grande, além da questão ambiental, que perpassa pela cultura local, pudemos ainda observar a paisagem e o crescimento desordenado das cidades de
Vila Velha, Vitória e Cariacica. Após cada experiência vivenciada nas aulas de campo, em sala de aula, houve conceituação, fazendo uma reflexão sociológica, a partir do concreto e não do abstrato. Instigamos, dessa forma, o pensar e o agir sociológico.
Etapa 4 – O cotidiano em cena: conversas sociológicas Na etapa 4 foi proposto pelo grupo do PIBID Ciências Sociais/UFES um trabalho através do qual, com o uso do celular, em duplas ou
individualmente, fosse capturado imagens do cotidiano que expressassem a cultura sob o olhar do jovem. Após a entrega do material, os pibidianos editaram os vídeos dos estudantes e fizeram uma exibição (após solicitar autorização para uso da imagem) e, em seguida, foram feitos dois momentos que denominamos de roda de conversa sociológica, onde foram debatidos elementos da cultura elencados pelos estudantes como, por exemplo, música, religiosidade, esporte, dentre outros. Além do vídeo, elaboraram um material escrito, sobre o vídeo que desenvolveram.
Etapa 5 – Avaliação Os estudantes foram avaliados a partir da elaboração do vídeo, do texto escrito e da participação nas rodas de conversa sociológicas. Após as rodas de conversa foi feito a proposta aos estudantes e à professora de Língua Portuguesa de elaboração de um trabalho interdisciplinar, onde os estudantes teriam que elaborar uma redação, seguindo as normas do ENEM
(Exame nacional do Ensino Médio), a partir da temática Diversidade cultural. O objetivo era perceber se haviam melhorado na argumentação, após as rodas de conversa, assim como, treinar a escrita da redação, a partir dos critérios cobrados pelo referido exame.
A culminância do trabalho se deu com as rodas de conversa sociológica, coordenada em parceria com os universitários do PIBID Ciências Sociais/UFES. Com a utilização de um slide (categorizando os aspectos da cultura levantados pelos jovens na elaboração dos vídeos), a conversa foi sendo orientada. Antes, houve a exibição do vídeo editado pelo PIBID. Todo esse momento foi filmado, com a autorização, por escrito, dos estudantes da escola.
Os envolvidos foram avaliados com base no envolvimento e comprometimento com o trabalho, assim como, com a participação na roda de conversa, com narrativas significativas para a desconstrução de preconceitos, fortalecimento da cidadania e dos direitos humanos.
A atividade foi bem avaliada pelos estudantes, sobretudo, pela possibilidade de vivência e do diálogo aberto e franco, sobre uma questão que, aparentemente, está esgotada. Durante o desenvolvimento da atividade, identificamos numa das turmas (3N05), um caso de bullying com uma das estudantes, devido ao fato dela ter problemas na fala.
Diante desse fato, trabalhamos com a turma o curta “Apeste da Janice” (disponível em https://www.youtube.com/watch?v=povo9wCtITo, Acesso em 01/08/2014)

Após uma roda de conversa, abordamos a temática e acredito que houve reflexão dos estudantes sobre o fenômeno. Um deles me perguntou diretamente se o que acontecia com a estudante mencionada era bullying e quando afirmei positivamente, eles olharam com espanto e se propuseram a mudar a atitude. Pude conversar com alguns deles em particular e acredito que os primeiros passos para mudanças já foi dado.
Nem tudo foram flores! O período da greve do magistério e o fato de termos apenas uma aula por semana em cada uma das turmas, além do calendário apertado por conta da Copa do
Mundo e das férias foi um grande dificultador para a elaboração das atividades. Além disso, o fato de que muitas atividades, sobretudo as de vivência, não pudessem ser realizadas a noite e o fato de que muitos trabalhavam ou faziam cursos no sábado, os impediu de participar de alguns momentos importantes. O índice de falta dos estudantes a noite ainda é alto e muitos acabaram por não fazer as atividades passadas em sala de aula, mesmo que valendo notas. Esse é outro
desafio a ser vencido.
 CONCLUSÃO
Com o Projeto “Respeito às diversidades, para que as diferenças não sejam vistas como desigualdades”, foi possível explorar os conceitos sociológicos com metodologias mais próximas da categoria geracional juventude.
Foi possível aproximar a Sociologia dos jovens à medida que os recursos e as metodologias fossem mais condizentes com as suas realidades. Atrelar o uso do celular às aulas foi uma boa estratégia, assim como a utilização do vídeo deles (editado) para ser o mote inicial para a aula. Se vir e vê os colegas no vídeo foi algo interessante para eles.
Conseguimos romper com a abordagem tradicional, discutindo conceitos importantes e com resultados satisfatórios.
A diversidade está na escola. Algumas mais explicitamente, outras não. Umas melhores trabalhadas, outras ainda invisibilizadas. Está lá o jeito de ser e estar do estudante, do jovem, do adulto, do professor e de cada sujeito que lá se encontra, independente do papel desempenhado. Falar da diversidade cultural na escola é falar da história de vida, das crenças, dos valores, dos costumes, de cada um dos sujeitos que ali convivem cotidianamente, colocando em evidência, esses sujeitos e suas histórias e suas culturas. A proposta foi problematizar nosso jeito de ser e estar no mundo,
assim como a forma de nos relacionarmos com o jeito de ser e estar no mundo do outro que é diferente de nós. Avalio a metodologia aplicada para o desenvolvimento do projeto como positiva, pela observação do comportamento dos estudantes diante da aula de Sociologia, logo, foi planejado para o terceiro trimestre, uma aula de campo (uma vivência na aldeia indígena Três Palmeiras, em Aracruz/ES), tendo como foco o cotidiano e as relações da cultura com o trabalho, em parceria com o PIBID Ciências Sociais UFES, envolvendo as mesmas turmas de 3º ano do Ensino Médio Regular e desenvolvendo as técnicas da pesquisa sociológica.
ANEXOS
ANEXO
 Links dos vídeos e referência dos textos utilizados nas aulas de Sociologia
para as aulas teóricas. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/0B_3uP-b112F5SEZtWFMzYzNfZ00/view
O Povo Brasileiro – Capítulo 1 – Matriz Tupi – Darcy Ribeiro, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Dmi0Jn_9sPA, acesso em 15/03/2014.
Gritaram-me negra (poema musicado de Victoria Santa Cruz) – Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=RljSb7AyPc0, acesso em 15/03/2014.
Senhora dos absurdos (Paulo Gustavo) – Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=-99E5bThWk8, acesso em 15/03/2014.
Última cena da novela Sinhá Moça (Rede Globo) – Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=DJx-Pt9ShXw, acesso em 20/03/2014.
COSTA, Ricardo Cesar Rocha da. OLIVEIRA, Luiz Fernandes de. Sociologia para jovens do século XXI. Rio de Janeiro: Imperial Novo
Milênio, 2013. p. 63-97.
* Professora de Sociologia e mestra em Educação pela Universidade do Espírito Santo/UFES.

 

Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

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